92 > época, 6 de agosto de 2012
ÉPOCA – O que suas pesquisas sobre o impacto da leitura no
cérebro revelaram?
Stanislas Dehaene – Constatamos que nosso cérebro aprendeu
a ler a partir de uma reciclagem dos neurônios. Isso quer dizer
que neurônios usados na leitura antes eram empregados
em outro tipo de tarefa. Nosso cérebro de primata não teve
tempo de amadurecer para aprender a ler. A leitura só foi
possível porque conseguimos adaptar os símbolos a formas
já conhecidas há milhares de anos. Diferentemente do que
disse John Locke, nossa cabeça não é uma página em branco
pronta para aprender qualquer tipo de coisa. Esse é um
exemplo de como a cultura se adaptou às possibilidades de
nossa mente. Concluímos que a leitura despertou em nosso
cérebro a capacidade de perceber diferenças sutis e aumentou
nossa capacidade de memorizar informações. É interessante
observar que o cérebro mobiliza a mesma área para a leitura
de qualquer idioma. O processamento da leitura do chinês ou
do hebraico, da direita para a esquerda, acontece na mesma
região que decodifica o inglês, o francês e o português.
ÉPOCA – O senhor disse que a leitura usou uma parte do cérebro
antes destinada a outras funções. Que funções eram essas e o que
aconteceu com elas?
Dehaene – Antes de aprendermos a ler, usávamos essa parte
do cérebro para reconhecer formas de objetos e de rostos.
Se você escanear o cérebro de pessoas que não leem e comparar
com as alfabetizadas, a identificação de rostos para as
iletradas mobiliza uma parte maior do cérebro que a mesma
função nas alfabetizadas. Existe certa competição de competências
na mesma região do cérebro. É como se ele tivesse
de abrir espaço para a leitura.
ÉPOCA – Isso quer dizer, nesse exemplo, que o cérebro letrado
passou a usar um número menor de neurônios para a mesma
função? Isso tem impacto na qualidade da função?
Dehaene – Não temos provas científicas de que ocorra perda
de competência. Um mesmo neurônio pode ter um número
desconhecido de sinapses, de acordo com o estímulo do
ambiente. Mas essa é uma suposição lógica. Afinal, temos
de dividir um mesmo número de neurônios em várias atividades.
Nosso grupo de pesquisas na Amazônia mostrou
que o cérebro de pessoas que não leem tem habilidades
Ideias
Uma das tarefas comuns da ciência é desvenda r a complexidade por trás de atividades
aparentemente simples. O matemático e neurocientista francês Stanislas Dehaene dedica-se a decifrar as
mudanças cerebrais causadas pelo ato de ler. Para ele, a leitura moldou o cérebro humano e preparou-o para
assimilar habilidades impossíveis de ser aprendidas por iletrados. Em seu livro Os neurônios da leitura (Editora Penso,
R$ 71), ele afirma que o conhecimento do impacto da leitura no cérebro pode melhorar métodos de alfabetização para
crianças e dá exemplos de como esse conhecimento tem auxiliado pessoas com dislexia. E mais: Dehaene diz que a
pedagogia do construtivismo, altamente disseminada no Brasil, pode ser ineficaz para o ensino da leitura.
Flávia Yuri
O cientista condena o construtivismo como
método de alfabetização e diz como os estudos
com cérebro podem ajudar disléxicos a ler
A neurociência deve
ir para a sala de aula
Stanislas Dehaene
ENTREVISTA
Foto: divulgação
6 de agosto de 2012, época > 93
Neurônios
em atividade
O neurocientista
Stanislas Dehaene em
congresso na França.
Há 20 anos, ele estuda
o impacto dos números
e das letras no cérebro
relacionadas à noção espacial e de matemática muito avançadas.
Não temos dados científicos que provem que eles
sejam melhores nessas tarefas porque não leem. Mas essa
é uma possibilidade.
ÉPOCA – De que forma suas descobertas podem auxiliar no
processo de educação?
Dehaene – Verificamos, por meio de várias experiências, que
o método mais eficaz de alfabetização é o que chamamos
fônico. Ele parte do ensino das letras e da correspondência
fonética de cada uma delas. Nossos estudos mostraram
que a criança alfabetizada por esse método aprende a ler
de forma mais rápida e eficiente. Os métodos de ensino
que seguem o conceito de educação global, por outro lado,
mostraram-se ineficazes. (No método global, a criança deve,
primeiro, aprender o significado da palavra e, numa próxima
etapa, os símbolos que a compõem.)
ÉPOCA – No Brasil, o construtivismo, que segue as premissas do
método global para a alfabetização, é amplamente disseminado.
Por que os sistemas que seguem o método global são ineficazes?
Dehaene – Verificamos em pesquisa com pessoas de diferentes
idiomas que o aprendizado da linguagem se dá a
partir da identificação da letra e do som correspondente.
No português, a criança aprende primeiro a combinação
de consoantes e vogais. A próxima etapa é entender a combinação
entre duas consoantes e uma vogal, como o “vra”
de palavra. Essa composição de formas, do menor para o
maior, é feita no lado esquerdo do cérebro. Quando se usam
metodologias para a alfabetização que seguem o método
global, no qual a criança primeiro aprende o sentido da
palavra, sem necessariamente conhecer os símbolos, o lado
direito é ativado. Mas a decodificação dos símbolos terá de
chegar ao lado esquerdo para que a leitura seja concluída.
É um processo mais demorado, que segue na via contrária
ao funcionamento do cérebro. Num certo sentido, podemos
dizer que esse método ensina o lado errado primeiro. As
crianças que aprendem a ler processando primeiro o lado
esquerdo do cérebro estabelecem relações imediatas entre
letras e seus sons, leem com mais facilidade e entendem
mais rapidamente o significado do que estão lendo. Crianças
com dislexia que começam a treinar o lado esquerdo s
94 > época, 6 de agosto de 2012
Ideias
bem as diferenças dos sons da língua. Elas têm problemas com
fonologia. Não com o som de letras como a, b, c e d. Mas com
o som da linguagem, como dã, bã e pã. Há diferentes tipos
de dislexia. Há pessoas que têm dificuldade em enxergar as
letras em determinados lugares da palavra ou em visualizar
símbolos específicos. O que os disléxicos têm em comum é a
dificuldade em criar o mapa dos símbolos e dos sons.
ÉPOCA – Sua pesquisa pode ajudá-los de alguma forma?
Dehaene – Antes não era óbvio que a maioria dos disléxicos
tinha problemas com os sons da linguagem. Agora que sabemos
disso, começamos a trabalhar com jogos de reabilitação
com ótimos resultados. É possível ajudar as crianças com
dislexia com jogos de leitura, de rimas ou brincadeiras de
mudar sílabas. Pode-se brincar de trocar o som de “bra”
de Brasil por “dra” ou “pra”. Vimos que brincadeiras orais
fáceis têm facilitado o aprendizado.
ÉPOCA – Que resultados esse tipo de exercício
já produziu?
Dehaene – Constatamos com exames
de imagem que partes do cérebro não
usadas em pessoas com dislexia passam
a ser exercitadas com esse tipo
de atividade. Isso as ajuda a perceber
os sons da linguagem, o que é muito
importante para o aprendizado da leitura.
Para surtir resultados, é importante
aplicar esses jogos todos os dias,
de forma intensiva.
ÉPOCA – Se o cérebro dos disléxicos é organizado
de forma diferente, isso sugere
que eles possam ter outras habilidades que
alguém sem a dislexia não tem?
Dehaene – Essa é uma questão interessante.
Assim como há a possibilidade de
perdermos algumas habilidades quando
aprendemos a ler, existe a possibilidade
de o cérebro disléxico ter facilidade com algumas áreas. Ainda
faltam pesquisas para podermos constatar isso. Mas estudos
sugerem que o senso de simetria do disléxico pode ser mais
desenvolvido, e isso ajuda em matemática. Sabemos que há
muitos disléxicos que podem ser bons em matemática. Estudos
sugerem que eles podem enxergar padrões sofisticados
com mais facilidade.
ÉPOCA – Pode haver gênios em matemática que não sabem ler?
Dehaene – Isso é algo muito, muito raro. Pode haver pessoas
iletradas muito boas em cálculos. Mas elas não serão gênios
em matemática sem ler. Para avançar em matemática, a
pessoa precisa entender diferenças sutis num nível muito
sofisticado. É justamente a percepção dessas diferenças
sutis que a leitura ativa no cérebro. Ler é uma habilidade
extraordinária que pode transformar o cérebro e prepará-lo
para outros níveis de aprendizado. Não dá para ir muito
longe sem leitura. u
entrevista
do cérebro têm muito mais chances de superar a dificuldade
no aprendizado da leitura.
ÉPOCA – É possível quantificar esse atraso de leitura que o senhor
menciona?
Dehaene – Quanto mais próxima for a correspondência da
letra com o som, mais fácil para um indivíduo automatizar
a ação de ler. Português e italiano são idiomas muito transparentes,
pois cada letra corresponde a um som. Inglês e
francês são línguas em que a correspondência de sons pode
variar bastante. Pesquisas mostram que, ao ter aulas regulares,
todos os dias, na escola, a criança leva dois anos a mais
para dominar o inglês que para dominar o italiano.
ÉPOCA – É possível identificar diferenças no cérebro de quem
consegue ler palavras e frases, mas tem dificuldade na interpretação
de textos (no Brasil, eles são conhecidos como analfabetos
funcionais) em relação a alguém que lê e interpreta o conteúdo
com fluência?
Dehaene – Não identificamos isso em
pesquisa de imagens. Mas a dificuldade
que algumas pessoas têm de interpretar
o que leem ocorre basicamente porque
elas ainda não automatizaram a decodificação
das palavras. Decodificar pede
esforço para quem não tem essa função
bem desenvolvida. Isso mobiliza completamente
a atenção e os esforços de
quem está lendo, a ponto de não conseguir
se concentrar na mensagem. A solução
para melhorar a interpretação de
texto é automatizar a leitura. Por isso,
é importante que crianças pequenas
leiam de forma regular até que isso se
torne uma rotina. As crianças começam
a interpretar textos com eficiência depois
que a leitura se torna um processo
automatizado.
ÉPOCA – Aprender a ler partituras tem o mesmo efeito para o
cérebro que ler palavras?
Dehaene – As áreas do cérebro usadas para ler letras não são
exatamente as mesmas usadas para decodificar música. Não
há muitos estudos sobre a parte cerebral usada no aprendizado
de música. Mas há diversas pesquisas sobre o efeito da
música na vida das crianças. Crianças que aprendem música
desenvolvem habilidades escolares avançadas, especialmente
no domínio da leitura. Elas têm mais facilidade para se concentrar.
Aprender música aumenta os níveis de inteligência
(Q.I.). Aprender música é uma forma excelente de desenvolver
o cérebro, especialmente o de crianças.
ÉPOCA – Pessoas com dislexia leem de forma diferente ou apenas
mais devagar?
Dehaene – Pessoas com dislexia tendem a ter problemas com a
conexão entre letra e som. É muito difícil para elas entender
essa ligação. Em parte, porque não podem distinguir muito
Stanislas Dehaene
Jogos simples
de leitura, de
rimas e
de troca de sons
podem aj udar
crianças com
dislexia a ler
ÉPOCA – O que suas pesquisas sobre o impacto da leitura no
cérebro revelaram?
Stanislas Dehaene – Constatamos que nosso cérebro aprendeu
a ler a partir de uma reciclagem dos neurônios. Isso quer dizer
que neurônios usados na leitura antes eram empregados
em outro tipo de tarefa. Nosso cérebro de primata não teve
tempo de amadurecer para aprender a ler. A leitura só foi
possível porque conseguimos adaptar os símbolos a formas
já conhecidas há milhares de anos. Diferentemente do que
disse John Locke, nossa cabeça não é uma página em branco
pronta para aprender qualquer tipo de coisa. Esse é um
exemplo de como a cultura se adaptou às possibilidades de
nossa mente. Concluímos que a leitura despertou em nosso
cérebro a capacidade de perceber diferenças sutis e aumentou
nossa capacidade de memorizar informações. É interessante
observar que o cérebro mobiliza a mesma área para a leitura
de qualquer idioma. O processamento da leitura do chinês ou
do hebraico, da direita para a esquerda, acontece na mesma
região que decodifica o inglês, o francês e o português.
ÉPOCA – O senhor disse que a leitura usou uma parte do cérebro
antes destinada a outras funções. Que funções eram essas e o que
aconteceu com elas?
Dehaene – Antes de aprendermos a ler, usávamos essa parte
do cérebro para reconhecer formas de objetos e de rostos.
Se você escanear o cérebro de pessoas que não leem e comparar
com as alfabetizadas, a identificação de rostos para as
iletradas mobiliza uma parte maior do cérebro que a mesma
função nas alfabetizadas. Existe certa competição de competências
na mesma região do cérebro. É como se ele tivesse
de abrir espaço para a leitura.
ÉPOCA – Isso quer dizer, nesse exemplo, que o cérebro letrado
passou a usar um número menor de neurônios para a mesma
função? Isso tem impacto na qualidade da função?
Dehaene – Não temos provas científicas de que ocorra perda
de competência. Um mesmo neurônio pode ter um número
desconhecido de sinapses, de acordo com o estímulo do
ambiente. Mas essa é uma suposição lógica. Afinal, temos
de dividir um mesmo número de neurônios em várias atividades.
Nosso grupo de pesquisas na Amazônia mostrou
que o cérebro de pessoas que não leem tem habilidades
Ideias
Uma das tarefas comuns da ciência é desvenda r a complexidade por trás de atividades
aparentemente simples. O matemático e neurocientista francês Stanislas Dehaene dedica-se a decifrar as
mudanças cerebrais causadas pelo ato de ler. Para ele, a leitura moldou o cérebro humano e preparou-o para
assimilar habilidades impossíveis de ser aprendidas por iletrados. Em seu livro Os neurônios da leitura (Editora Penso,
R$ 71), ele afirma que o conhecimento do impacto da leitura no cérebro pode melhorar métodos de alfabetização para
crianças e dá exemplos de como esse conhecimento tem auxiliado pessoas com dislexia. E mais: Dehaene diz que a
pedagogia do construtivismo, altamente disseminada no Brasil, pode ser ineficaz para o ensino da leitura.
Flávia Yuri
O cientista condena o construtivismo como
método de alfabetização e diz como os estudos
com cérebro podem ajudar disléxicos a ler
A neurociência deve
ir para a sala de aula
Stanislas Dehaene
ENTREVISTA
Foto: divulgação
6 de agosto de 2012, época > 93
Neurônios
em atividade
O neurocientista
Stanislas Dehaene em
congresso na França.
Há 20 anos, ele estuda
o impacto dos números
e das letras no cérebro
relacionadas à noção espacial e de matemática muito avançadas.
Não temos dados científicos que provem que eles
sejam melhores nessas tarefas porque não leem. Mas essa
é uma possibilidade.
ÉPOCA – De que forma suas descobertas podem auxiliar no
processo de educação?
Dehaene – Verificamos, por meio de várias experiências, que
o método mais eficaz de alfabetização é o que chamamos
fônico. Ele parte do ensino das letras e da correspondência
fonética de cada uma delas. Nossos estudos mostraram
que a criança alfabetizada por esse método aprende a ler
de forma mais rápida e eficiente. Os métodos de ensino
que seguem o conceito de educação global, por outro lado,
mostraram-se ineficazes. (No método global, a criança deve,
primeiro, aprender o significado da palavra e, numa próxima
etapa, os símbolos que a compõem.)
ÉPOCA – No Brasil, o construtivismo, que segue as premissas do
método global para a alfabetização, é amplamente disseminado.
Por que os sistemas que seguem o método global são ineficazes?
Dehaene – Verificamos em pesquisa com pessoas de diferentes
idiomas que o aprendizado da linguagem se dá a
partir da identificação da letra e do som correspondente.
No português, a criança aprende primeiro a combinação
de consoantes e vogais. A próxima etapa é entender a combinação
entre duas consoantes e uma vogal, como o “vra”
de palavra. Essa composição de formas, do menor para o
maior, é feita no lado esquerdo do cérebro. Quando se usam
metodologias para a alfabetização que seguem o método
global, no qual a criança primeiro aprende o sentido da
palavra, sem necessariamente conhecer os símbolos, o lado
direito é ativado. Mas a decodificação dos símbolos terá de
chegar ao lado esquerdo para que a leitura seja concluída.
É um processo mais demorado, que segue na via contrária
ao funcionamento do cérebro. Num certo sentido, podemos
dizer que esse método ensina o lado errado primeiro. As
crianças que aprendem a ler processando primeiro o lado
esquerdo do cérebro estabelecem relações imediatas entre
letras e seus sons, leem com mais facilidade e entendem
mais rapidamente o significado do que estão lendo. Crianças
com dislexia que começam a treinar o lado esquerdo s
94 > época, 6 de agosto de 2012
Ideias
bem as diferenças dos sons da língua. Elas têm problemas com
fonologia. Não com o som de letras como a, b, c e d. Mas com
o som da linguagem, como dã, bã e pã. Há diferentes tipos
de dislexia. Há pessoas que têm dificuldade em enxergar as
letras em determinados lugares da palavra ou em visualizar
símbolos específicos. O que os disléxicos têm em comum é a
dificuldade em criar o mapa dos símbolos e dos sons.
ÉPOCA – Sua pesquisa pode ajudá-los de alguma forma?
Dehaene – Antes não era óbvio que a maioria dos disléxicos
tinha problemas com os sons da linguagem. Agora que sabemos
disso, começamos a trabalhar com jogos de reabilitação
com ótimos resultados. É possível ajudar as crianças com
dislexia com jogos de leitura, de rimas ou brincadeiras de
mudar sílabas. Pode-se brincar de trocar o som de “bra”
de Brasil por “dra” ou “pra”. Vimos que brincadeiras orais
fáceis têm facilitado o aprendizado.
ÉPOCA – Que resultados esse tipo de exercício
já produziu?
Dehaene – Constatamos com exames
de imagem que partes do cérebro não
usadas em pessoas com dislexia passam
a ser exercitadas com esse tipo
de atividade. Isso as ajuda a perceber
os sons da linguagem, o que é muito
importante para o aprendizado da leitura.
Para surtir resultados, é importante
aplicar esses jogos todos os dias,
de forma intensiva.
ÉPOCA – Se o cérebro dos disléxicos é organizado
de forma diferente, isso sugere
que eles possam ter outras habilidades que
alguém sem a dislexia não tem?
Dehaene – Essa é uma questão interessante.
Assim como há a possibilidade de
perdermos algumas habilidades quando
aprendemos a ler, existe a possibilidade
de o cérebro disléxico ter facilidade com algumas áreas. Ainda
faltam pesquisas para podermos constatar isso. Mas estudos
sugerem que o senso de simetria do disléxico pode ser mais
desenvolvido, e isso ajuda em matemática. Sabemos que há
muitos disléxicos que podem ser bons em matemática. Estudos
sugerem que eles podem enxergar padrões sofisticados
com mais facilidade.
ÉPOCA – Pode haver gênios em matemática que não sabem ler?
Dehaene – Isso é algo muito, muito raro. Pode haver pessoas
iletradas muito boas em cálculos. Mas elas não serão gênios
em matemática sem ler. Para avançar em matemática, a
pessoa precisa entender diferenças sutis num nível muito
sofisticado. É justamente a percepção dessas diferenças
sutis que a leitura ativa no cérebro. Ler é uma habilidade
extraordinária que pode transformar o cérebro e prepará-lo
para outros níveis de aprendizado. Não dá para ir muito
longe sem leitura. u
entrevista
do cérebro têm muito mais chances de superar a dificuldade
no aprendizado da leitura.
ÉPOCA – É possível quantificar esse atraso de leitura que o senhor
menciona?
Dehaene – Quanto mais próxima for a correspondência da
letra com o som, mais fácil para um indivíduo automatizar
a ação de ler. Português e italiano são idiomas muito transparentes,
pois cada letra corresponde a um som. Inglês e
francês são línguas em que a correspondência de sons pode
variar bastante. Pesquisas mostram que, ao ter aulas regulares,
todos os dias, na escola, a criança leva dois anos a mais
para dominar o inglês que para dominar o italiano.
ÉPOCA – É possível identificar diferenças no cérebro de quem
consegue ler palavras e frases, mas tem dificuldade na interpretação
de textos (no Brasil, eles são conhecidos como analfabetos
funcionais) em relação a alguém que lê e interpreta o conteúdo
com fluência?
Dehaene – Não identificamos isso em
pesquisa de imagens. Mas a dificuldade
que algumas pessoas têm de interpretar
o que leem ocorre basicamente porque
elas ainda não automatizaram a decodificação
das palavras. Decodificar pede
esforço para quem não tem essa função
bem desenvolvida. Isso mobiliza completamente
a atenção e os esforços de
quem está lendo, a ponto de não conseguir
se concentrar na mensagem. A solução
para melhorar a interpretação de
texto é automatizar a leitura. Por isso,
é importante que crianças pequenas
leiam de forma regular até que isso se
torne uma rotina. As crianças começam
a interpretar textos com eficiência depois
que a leitura se torna um processo
automatizado.
ÉPOCA – Aprender a ler partituras tem o mesmo efeito para o
cérebro que ler palavras?
Dehaene – As áreas do cérebro usadas para ler letras não são
exatamente as mesmas usadas para decodificar música. Não
há muitos estudos sobre a parte cerebral usada no aprendizado
de música. Mas há diversas pesquisas sobre o efeito da
música na vida das crianças. Crianças que aprendem música
desenvolvem habilidades escolares avançadas, especialmente
no domínio da leitura. Elas têm mais facilidade para se concentrar.
Aprender música aumenta os níveis de inteligência
(Q.I.). Aprender música é uma forma excelente de desenvolver
o cérebro, especialmente o de crianças.
ÉPOCA – Pessoas com dislexia leem de forma diferente ou apenas
mais devagar?
Dehaene – Pessoas com dislexia tendem a ter problemas com a
conexão entre letra e som. É muito difícil para elas entender
essa ligação. Em parte, porque não podem distinguir muito
Stanislas Dehaene
Jogos simples
de leitura, de
rimas e
de troca de sons
podem aj udar
crianças com
dislexia a ler
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