quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Entrevista -Stanislas Dehaene

92 > época, 6 de agosto de 2012


ÉPOCA – O que suas pesquisas sobre o impacto da leitura no

cérebro revelaram?

Stanislas Dehaene – Constatamos que nosso cérebro aprendeu

a ler a partir de uma reciclagem dos neurônios. Isso quer dizer

que neurônios usados na leitura antes eram empregados

em outro tipo de tarefa. Nosso cérebro de primata não teve

tempo de amadurecer para aprender a ler. A leitura só foi

possível porque conseguimos adaptar os símbolos a formas

já conhecidas há milhares de anos. Diferentemente do que

disse John Locke, nossa cabeça não é uma página em branco

pronta para aprender qualquer tipo de coisa. Esse é um

exemplo de como a cultura se adaptou às possibilidades de

nossa mente. Concluímos que a leitura despertou em nosso

cérebro a capacidade de perceber diferenças sutis e aumentou

nossa capacidade de memorizar informações. É interessante

observar que o cérebro mobiliza a mesma área para a leitura

de qualquer idioma. O processamento da leitura do chinês ou

do hebraico, da direita para a esquerda, acontece na mesma

região que decodifica o inglês, o francês e o português.

ÉPOCA – O senhor disse que a leitura usou uma parte do cérebro

antes destinada a outras funções. Que funções eram essas e o que

aconteceu com elas?

Dehaene – Antes de aprendermos a ler, usávamos essa parte

do cérebro para reconhecer formas de objetos e de rostos.

Se você escanear o cérebro de pessoas que não leem e comparar

com as alfabetizadas, a identificação de rostos para as

iletradas mobiliza uma parte maior do cérebro que a mesma

função nas alfabetizadas. Existe certa competição de competências

na mesma região do cérebro. É como se ele tivesse

de abrir espaço para a leitura.

ÉPOCA – Isso quer dizer, nesse exemplo, que o cérebro letrado

passou a usar um número menor de neurônios para a mesma

função? Isso tem impacto na qualidade da função?

Dehaene – Não temos provas científicas de que ocorra perda

de competência. Um mesmo neurônio pode ter um número

desconhecido de sinapses, de acordo com o estímulo do

ambiente. Mas essa é uma suposição lógica. Afinal, temos

de dividir um mesmo número de neurônios em várias atividades.

Nosso grupo de pesquisas na Amazônia mostrou

que o cérebro de pessoas que não leem tem habilidades

Ideias

Uma das tarefas comuns da ciência é desvenda r a complexidade por trás de atividades

aparentemente simples. O matemático e neurocientista francês Stanislas Dehaene dedica-se a decifrar as

mudanças cerebrais causadas pelo ato de ler. Para ele, a leitura moldou o cérebro humano e preparou-o para

assimilar habilidades impossíveis de ser aprendidas por iletrados. Em seu livro Os neurônios da leitura (Editora Penso,

R$ 71), ele afirma que o conhecimento do impacto da leitura no cérebro pode melhorar métodos de alfabetização para

crianças e dá exemplos de como esse conhecimento tem auxiliado pessoas com dislexia. E mais: Dehaene diz que a

pedagogia do construtivismo, altamente disseminada no Brasil, pode ser ineficaz para o ensino da leitura.

Flávia Yuri

O cientista condena o construtivismo como

método de alfabetização e diz como os estudos

com cérebro podem ajudar disléxicos a ler

A neurociência deve

ir para a sala de aula

Stanislas Dehaene

ENTREVISTA

Foto: divulgação

6 de agosto de 2012, época > 93

Neurônios

em atividade

O neurocientista

Stanislas Dehaene em

congresso na França.

Há 20 anos, ele estuda

o impacto dos números

e das letras no cérebro

relacionadas à noção espacial e de matemática muito avançadas.

Não temos dados científicos que provem que eles

sejam melhores nessas tarefas porque não leem. Mas essa

é uma possibilidade.

ÉPOCA – De que forma suas descobertas podem auxiliar no

processo de educação?

Dehaene – Verificamos, por meio de várias experiências, que

o método mais eficaz de alfabetização é o que chamamos

fônico. Ele parte do ensino das letras e da correspondência

fonética de cada uma delas. Nossos estudos mostraram

que a criança alfabetizada por esse método aprende a ler

de forma mais rápida e eficiente. Os métodos de ensino

que seguem o conceito de educação global, por outro lado,

mostraram-se ineficazes. (No método global, a criança deve,

primeiro, aprender o significado da palavra e, numa próxima

etapa, os símbolos que a compõem.)

ÉPOCA – No Brasil, o construtivismo, que segue as premissas do

método global para a alfabetização, é amplamente disseminado.

Por que os sistemas que seguem o método global são ineficazes?

Dehaene – Verificamos em pesquisa com pessoas de diferentes

idiomas que o aprendizado da linguagem se dá a

partir da identificação da letra e do som correspondente.

No português, a criança aprende primeiro a combinação

de consoantes e vogais. A próxima etapa é entender a combinação

entre duas consoantes e uma vogal, como o “vra”

de palavra. Essa composição de formas, do menor para o

maior, é feita no lado esquerdo do cérebro. Quando se usam

metodologias para a alfabetização que seguem o método

global, no qual a criança primeiro aprende o sentido da

palavra, sem necessariamente conhecer os símbolos, o lado

direito é ativado. Mas a decodificação dos símbolos terá de

chegar ao lado esquerdo para que a leitura seja concluída.

É um processo mais demorado, que segue na via contrária

ao funcionamento do cérebro. Num certo sentido, podemos

dizer que esse método ensina o lado errado primeiro. As

crianças que aprendem a ler processando primeiro o lado

esquerdo do cérebro estabelecem relações imediatas entre

letras e seus sons, leem com mais facilidade e entendem

mais rapidamente o significado do que estão lendo. Crianças

com dislexia que começam a treinar o lado esquerdo s

94 > época, 6 de agosto de 2012

Ideias

bem as diferenças dos sons da língua. Elas têm problemas com

fonologia. Não com o som de letras como a, b, c e d. Mas com

o som da linguagem, como dã, bã e pã. Há diferentes tipos

de dislexia. Há pessoas que têm dificuldade em enxergar as

letras em determinados lugares da palavra ou em visualizar

símbolos específicos. O que os disléxicos têm em comum é a

dificuldade em criar o mapa dos símbolos e dos sons.

ÉPOCA – Sua pesquisa pode ajudá-los de alguma forma?

Dehaene – Antes não era óbvio que a maioria dos disléxicos

tinha problemas com os sons da linguagem. Agora que sabemos

disso, começamos a trabalhar com jogos de reabilitação

com ótimos resultados. É possível ajudar as crianças com

dislexia com jogos de leitura, de rimas ou brincadeiras de

mudar sílabas. Pode-se brincar de trocar o som de “bra”

de Brasil por “dra” ou “pra”. Vimos que brincadeiras orais

fáceis têm facilitado o aprendizado.

ÉPOCA – Que resultados esse tipo de exercício

já produziu?

Dehaene – Constatamos com exames

de imagem que partes do cérebro não

usadas em pessoas com dislexia passam

a ser exercitadas com esse tipo

de atividade. Isso as ajuda a perceber

os sons da linguagem, o que é muito

importante para o aprendizado da leitura.

Para surtir resultados, é importante

aplicar esses jogos todos os dias,

de forma intensiva.

ÉPOCA – Se o cérebro dos disléxicos é organizado

de forma diferente, isso sugere

que eles possam ter outras habilidades que

alguém sem a dislexia não tem?

Dehaene – Essa é uma questão interessante.

Assim como há a possibilidade de

perdermos algumas habilidades quando

aprendemos a ler, existe a possibilidade

de o cérebro disléxico ter facilidade com algumas áreas. Ainda

faltam pesquisas para podermos constatar isso. Mas estudos

sugerem que o senso de simetria do disléxico pode ser mais

desenvolvido, e isso ajuda em matemática. Sabemos que há

muitos disléxicos que podem ser bons em matemática. Estudos

sugerem que eles podem enxergar padrões sofisticados

com mais facilidade.

ÉPOCA – Pode haver gênios em matemática que não sabem ler?

Dehaene – Isso é algo muito, muito raro. Pode haver pessoas

iletradas muito boas em cálculos. Mas elas não serão gênios

em matemática sem ler. Para avançar em matemática, a

pessoa precisa entender diferenças sutis num nível muito

sofisticado. É justamente a percepção dessas diferenças

sutis que a leitura ativa no cérebro. Ler é uma habilidade

extraordinária que pode transformar o cérebro e prepará-lo

para outros níveis de aprendizado. Não dá para ir muito

longe sem leitura. u

entrevista

do cérebro têm muito mais chances de superar a dificuldade

no aprendizado da leitura.

ÉPOCA – É possível quantificar esse atraso de leitura que o senhor

menciona?

Dehaene – Quanto mais próxima for a correspondência da

letra com o som, mais fácil para um indivíduo automatizar

a ação de ler. Português e italiano são idiomas muito transparentes,

pois cada letra corresponde a um som. Inglês e

francês são línguas em que a correspondência de sons pode

variar bastante. Pesquisas mostram que, ao ter aulas regulares,

todos os dias, na escola, a criança leva dois anos a mais

para dominar o inglês que para dominar o italiano.

ÉPOCA – É possível identificar diferenças no cérebro de quem

consegue ler palavras e frases, mas tem dificuldade na interpretação

de textos (no Brasil, eles são conhecidos como analfabetos

funcionais) em relação a alguém que lê e interpreta o conteúdo

com fluência?

Dehaene – Não identificamos isso em

pesquisa de imagens. Mas a dificuldade

que algumas pessoas têm de interpretar

o que leem ocorre basicamente porque

elas ainda não automatizaram a decodificação

das palavras. Decodificar pede

esforço para quem não tem essa função

bem desenvolvida. Isso mobiliza completamente

a atenção e os esforços de

quem está lendo, a ponto de não conseguir

se concentrar na mensagem. A solução

para melhorar a interpretação de

texto é automatizar a leitura. Por isso,

é importante que crianças pequenas

leiam de forma regular até que isso se

torne uma rotina. As crianças começam

a interpretar textos com eficiência depois

que a leitura se torna um processo

automatizado.

ÉPOCA – Aprender a ler partituras tem o mesmo efeito para o

cérebro que ler palavras?

Dehaene – As áreas do cérebro usadas para ler letras não são

exatamente as mesmas usadas para decodificar música. Não

há muitos estudos sobre a parte cerebral usada no aprendizado

de música. Mas há diversas pesquisas sobre o efeito da

música na vida das crianças. Crianças que aprendem música

desenvolvem habilidades escolares avançadas, especialmente

no domínio da leitura. Elas têm mais facilidade para se concentrar.

Aprender música aumenta os níveis de inteligência

(Q.I.). Aprender música é uma forma excelente de desenvolver

o cérebro, especialmente o de crianças.

ÉPOCA – Pessoas com dislexia leem de forma diferente ou apenas

mais devagar?

Dehaene – Pessoas com dislexia tendem a ter problemas com a

conexão entre letra e som. É muito difícil para elas entender

essa ligação. Em parte, porque não podem distinguir muito

Stanislas Dehaene

Jogos simples

de leitura, de

rimas e

de troca de sons

podem aj udar

crianças com

dislexia a ler

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